A resposta a esta indagação exige esclarecer algumas confusões frequentes.
A primeira diz respeito à expressão “Normas Técnicas”. Podem Normas Técnicas ser consideradas obras intelectuais protegidas visto não serem criações do campo da estética? Na verdade, o conteúdo técnico ou o caráter utilitário de uma criação não afasta por si só sua proteção autoral uma vez que não se tutelam apenas as obras de ficção, mas também obras técnicas e científicas.
A própria Lei de Direitos Autorais refere-se genericamente, como objeto de sua tutela, às “criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível”, dispondo a seguir que “no domínio das ciências, a proteção recairá sobre a forma literária ou artística, não abrangendo o seu conteúdo científico ou técnico, sem prejuízo dos direitos que protegem os demais campos da propriedade imaterial.”
Mas a expressão “norma técnica” evoca a existência de uma compilação de procedimentos normativos e a mesma Lei de Direitos Autorais estabelece que procedimentos normativos, sistemas e métodos não são objeto de Direito de Autor. Essa questão é uma variante da problemática anterior: o que se protege é a forma de expressão, ou seja, o texto que compila e incorpora os procedimentos normativos, não os procedimentos em si mesmos, que são de uso livre por qualquer pessoa da sociedade. Por essa razão, a Lei de Direitos Autorais deixa claro que a proteção de compilações, coletâneas ou bases de dados não se estende aos dados e materiais em si mesmos contidos nas obras.
A terceira dúvida relaciona-se com o requisito de criatividade exigido da forma de expressão para que seja tratada como obra intelectual suscetível de tutela autoral. Sustenta-se que a padronização das Normas Técnicas e as restrições decorrentes da descrição do procedimento normativo não permitiriam o exercício da liberdade de criação humana. Antes de mais nada, não se pode negar que a criação de Normas Técnicas é uma forma de atividade intelectual que se reveste de evidente complexidade, ou seja, não se trata de uma criação trivial.
Por outro lado, obras técnicas podem apresentar caráter criativo porque a expressão não é necessariamente limitada pelo conteúdo técnico ou pela exigência de padronização, já que existem formas alternativas de expressão. Isso se evidencia na redação e na composição do texto: com efeito, uma teoria científica pode ser descrita de diversas maneiras. Só não existe proteção quando determinada forma de expressão representa o único modo de manifestar a ideia. Por essa razão, uma fórmula matemática é um modo de expressão obrigatório; mas a descrição de um processo comporta diferentes modos de expressão, representados pela escolha das palavras, pela composição do texto e pelo encadeamento das ideias.
Esta problemática é recorrente quando se trata de criações técnicas ou científicas. Ao decidir em 1979 pela proteção autoral de bulas de remédio, o Supremo Tribunal Federal reconheceu que a bula tem a natureza de uma obra científica, não obstante a informação que ela veicula deva ter livre circulação e mesmo sendo a bula de remédio regulada pelo órgão técnico competente: “Nos trabalhos científicos o direito autoral protege a forma de expressão, e não as conclusões científicas ou seus ensinamentos, que pertencem a todos, no interesse do bem comum.” (Recurso Extraordinário nº 88.705).
Dúvidas parecem existir com relação ao tratamento da Norma Técnica como obra intelectual. Argumenta-se que, sendo fruto do trabalho de pessoas diversas que se aproveitam do conhecimento de outras, não seria possível destacar a participação que seja criativa. Este é um argumento que nega a possibilidade de obras coletivas, que são expressamente reconhecidas pela legislação.
Com efeito, obra coletiva é, justamente, aquela que é criada por iniciativa, organização e responsabilidade de uma pessoa jurídica, que a publica sob seu nome ou marca e que é constituída pela participação de diferentes autores, cujas contribuições se fundem numa criação autônoma. Portanto, a contribuição de pessoas diversas, que possam utilizar-se de outras contribuições, é a própria característica da criação coletiva. O que importa, e esse requisito é comum nos organismos de normalização, é que o processo de elaboração de Normas Técnicas seja conduzido e organizado por uma entidade.
Finalmente, há quem sustente que a atividade de normalização é de interesse público e que as Normas Técnicas são de observância obrigatória. O modelo de elaboração de Normas Técnicas em todo o mundo baseia-se na atuação de entidades privadas. O Poder Público geralmente deixou que essas atividades fossem desenvolvidas pelo setor privado, porque assim se faz com mais eficiência e sem onerar o orçamento público. Portanto, esse modelo pressupõe que a atividade seja financiada pela comercialização das Normas Técnicas, o que exige sejam protegidas. Do contrário, deverá o Estado assumir a atividade de normalização, custeando-a com recursos públicos.
O fato de o Estado promover ou exigir a observância de normas técnicas não as torna atos oficiais ou com força legal. A Norma Técnica é em si sempre voluntária; o que obriga sua observância será sempre um ato normativo do Poder Público, do qual decorre a sanção aplicável. E a exigência de que determinadas Normas Técnicas sejam cumpridas não implica que devam ser fornecidas gratuitamente. O objetivo da proteção não é impedir a utilização ou acesso da Norma Técnica em si. É permitir que a entidade que promove sua elaboração possa custear essa atividade, porque a Norma Técnica é inegavelmente uma criação intelectual.
Por Manoel J. Pereira dos Santos* Mestre e Doutor em Direito pela USP e professor do Curso de Pós GVlaw, PI e Novos Negócios da FGV Direito SP.
Fonte: ABNT